DESCRIÇÃO DO PROJECTO

 

A proposta científica tem por princípio orientador a questão: qual o papel da linguagem no processo criativo se considerarmos este como atravessando um caos essencial? Para esclarecer a questão vamos investigar dois conjuntos de problemas: 1) quais os mecanismos de incorporação da linguagem (embodiment) e 2) como é que as formas captam/ guardam/ emitem forças (esquematismo estético).

Teremos assim de compreender antes de mais em que sentido podemos caracterizar esse caos e em que medida essa caracterização pode contribuir para uma compreensão do papel da linguagem no processo criativo. Numa abordagem directa aos dois conjuntos de problemas somos confrontados em primeiro lugar com a incorporação da linguagem que é um tema complexo e difícil. Toda a ideia parte de um conceito: corpo-espelho de forças, diferente do corpo-espelho (de formas e qualidades) de Merleau-Ponty (1908-1961), e semelhante ao conceito de Espinosa (1632-1677) de imitação afectiva.

Recentemente, o americano Daniel Stern (1934) oferece pistas relevantes para o esclarecimento do conceito corpo-espelho de forças no livro “The Interpersonal World of the Infant” (1985) onde expõe a sua tese principal propondo o conceito de affective bonding. Este conceito não só identifica o laço estabelecido entre mãe e filho como sendo o mais importante como também o associa a afectos de vitalidade definidos a partir dos actos de comer, correr, existir a distinguir dos afectos categoriais ou darwinianos (alegria, tristeza, etc.). Por exemplo, a noção de devir em Gilles Deleuze (1925-1995) não se percebe, sem se compreender a affective bonding como um espelhamento que vai criar uma tensão (o que permite aceder ao conceito de diferença). Teremos então também de ver como é que situamos epistemológica e filosoficamente os neurónios-espelho, descoberta recentemente reclamada pela ciência, perguntando: como agem para que aconteça o espelhamento de forças? Qual a relação entre os neorónios-espelho e o self e quais as transformações destas instâncias no processo criativo?

A problemática da incorporação entendida assim está descrita no livro de referência de Françoise Dolto (1908-1988): “L'image inconsciente du corps” (1984). A obra permite-nos traçar um percurso que corresponde a um inquérito sobre o esquematismo estético: como é que o corpo-espelho de forças incorpora a linguagem, como é que  o inconsciente do corpo captura forças permitindo a manifestação de conteúdos inconscientes em signos artísticos? Por outras palavras, o que é a incorporação e qual o papel do corpo-espelho de forças na incorporação da linguagem?

Passamos assim ao segundo conjunto de problemas, como é que se pode investir signos e forças em imagens tomando-os como linguagem e não como comunicação? Trata-se de descrever como age no nível verbal (e outros) o inconsciente, que é também, o inconsciente do corpo. Como é que a linguagem se investe no corpo? A imagem do corpo é formada por sensações subtis (Dolto) que se assemelham às pequenas percepções de Leibniz. O que é esta possibilidade de imprimir forças em corpos? Estamos em plena estética de forças. Mesmo se pensarmos o caos a partir da ciência física percebemos que a dada altura se admite existir uma confusão entre o emissor e receptor e o que se percebe é uma osmotização, um espelhamento complexo semelhante ao acto de transferência psicótica (Françoise Davoine, “La folie Wittgenstein”, 2001) e “Mère folle: Récit”, 1999). Pensamos o inconsciente, incorporado através de: espelhamento, infra-língua (José Gil, “Metamorfoses do Corpo”, 1997), esquematismo estético.

A psicanálise torna-se assim um estudo de caso incontornável, para perceber a relação entre linguagem, inconsciente, incorporação e forças. Um estudo do ênfase posto na análise de sonhos pela psicanálise parece justamente querer responder à pergunta: como é que se pode investir signos e forças em imagens? Temos aqui a linguagem como metáfora, como jogo de forças, como expressão de uma retórica de forças.

Assim, é também objectivo deste projecto mostrar os efeitos desta investigação num aprofundamento da compreensão do que é que pode estar em jogo na cura psicanalítica. Porque é que a cura definida por Sigmund Freud (1856-1939) e interpretada por Jacques Lacan (1901-1981) considera o recalcado como algo que se deve reportar à linguagem? O que tem a linguagem de tão decisivo na cura? Ou, na estética: o que é uma imagem-nua (José Gil, “A Imagem-Nua e as Pequenas Percepções”) que pede para “falar”? E partir daí, o que pode ser o comentário de uma obra visual? Qual a relação entre os sentidos, os aisthetha e a palavra? Procuraremos dar inteligibilidade ao que Deleuze formula como: a arte pensa.

Para isso teremos de investigar, segundo a orientação definida, o que é o inconsciente da linguagem: o pré-verbal (Julia Kristeva, Le Langage, cet inconnu. Une initiation à la linguistique, 1969), as percepções subtis e a relação mãe-bébé (Dolto e Stern); a prosódia, o tom, a relação da oralidade, e vibração, com a intensidade da palavra; a linguagem como gesto e acto performativo; linguagem como mensagem possível através do incognoscível como não-dito; entretecimento do corpo-espelho de forças e corpo espelho na própria comunicação da linguagem; o não-sentido verbal (forças) que o sentido comporta; o inconsciente da linguagem como o não-dizível na metáfora dita; a noção de inconsciente (Freud e Lacan) e a linguagem.